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Novo meio latino-americano, Bocado quer criar jornalismo alimentar e investigar o que comemos, da semente ao prato

Quando Soledad Barruti se apresenta como jornalista alimentar, as pessoas a olham estranho. Para evitar essas reações, ela passou a usar a expressão "jornalista especializada em alimentação" ou em "sistemas alimentares". Barruti levanta uma questão relevante: temos inúmeras categorias de jornalismo, mas não temos uma para representar a cobertura sobre comida e tudo o que isso envolve, como saúde, economia, cultura e meio ambiente.  

"Temos que criar esse espaço, porque o tema realmente requer isso. O jornalismo automotivo, por exemplo, tem um lugar, então o jornalismo de alimentação também deve ter", disse Barruti à LatAm Journalism Review

A jornalista argentina explica que não se trata de jornalismo gastronômico. "Quando há um lugar [para alimentação] é crítica de restaurantes, entrevistas com chefs, receitas. Não é jornalismo, é comer, desfrutar, e depois dizer: 'gostei da massa de tal lugar'. Não é isso que queremos fazer, queremos um jornalismo que entenda por que esse sistema alimentar atual não funciona e está nos levando à ruína na saúde, nos recursos comuns e na economia", afirma.

É para dar espaço para esse tipo de reportagem que Barruti e o jornalista brasileiro João Peres fundaram o Bocado, projeto lançado no final de junho, com apoio do Instituto Ibirapitanga e a Fundação Heinrich Böll.

Foto de Soledad Barruti

Soledad Barruti Foto: Alejandro Gullot

O Bocado é uma rede regional de jornalistas, composta, até agora, de brasileiros, argentinos e mexicanos. O objetivo é fazer reportagens investigativas e aprofundadas sobre alimentação na América Latina, publicadas por veículos parceiros e no site do projeto em português e espanhol. Outra meta é formar repórteres na área, por meio de oficinas, e transformar o jornalismo alimentar em uma categoria reconhecida no meio e na sociedade. 

"Estamos preocupados em cobrir desde a semente até o supermercado, todas as etapas de produção, plantio, colheita, distribuição, comercialização e tudo que isso implica. Alguns desses temas aparecem em veículos da América Latina, tem repórteres que cobrem a questão rural ou a ambiental, por exemplo. Mas nós queremos olhar para a confluência desses fatores, o impacto ambiental, trabalhista, social e sanitário da produção de alimentos", afirmou Peres, à LJR

Barruti diz que reportagens sobre alimentação aparecem dispersas em várias seções dos jornais, nas editorias de ciência, saúde ou economia, mas raramente em destaque. "Parece que o tema alimentar nunca tem um espaço próprio, ainda que seja talvez um dos mais importantes que estamos enfrentando agora", diz ela. 

Em 30 de junho, o Bocado publicou a primeira série, com quatro reportagens e um editorial. O plano é lançar mais dois pacotes de conteúdo até setembro. 

Peres quer revezar os temas e países retratados, para evitar reforçar as assimetrias já existentes na região. "É muito mais simples conseguir assunto e jornalistas no México, Brasil e Argentina, mas não queremos ignorar outras realidades. Não queremos que locais que já têm mais atenção do público continuem sendo centrais", afirma. 

Além das reportagens investigativas, o Bocado quer publicar textos autorais e narrativos. "A gente quer que o repórter se sinta muito livre para arriscar no formato, trazer o olhar dele", conta Peres. 

Todo o conteúdo pode ser republicado gratuitamente, e o Bocado tem parcerias com veículos como Revista Anfíbia (Argentina), Pie de Página (México) e Contracorriente (Honduras) – alguns deles decidiram participar do projeto também com reportagens próprias.

João Peres

João Peres. Foto: Arquivo Pessoal

A ideia do Bocado surgiu de conversas entre Barruti e Peres, que começaram em 2017. Peres é criador do site O Joio e O Trigo, que trata de alimentação com uma abordagem similar. Barruti trabalha com a temática há dez anos e é autora de dois livros, "Malcomidos, como a indústria de alimentos argentina está nos matando" e "Mala Leche, o supermercado como emboscada", que foi publicado em vários países da América Latina.  

Em pouco tempo, ficou claro para os dois que eles tinham muito a ganhar com uma colaboração. Seus países eram mais parecidos do que imaginavam. E concluíram que uma rede ajudaria a fortalecer as investigações na área. 

"São países que viram seus índices de obesidade e doenças crônicas aumentarem muito rápido desde os anos 1990. Temos sistemas alimentares tradicionais parecidos, que estão sob ameaça, porque o avanço do agronegócio é um elemento comum na Argentina, Brasil, Paraguai, Bolívia… Tem muita coisa para comparar", afirma Peres.

Barruti diz que a colaboração foi possível porque eles compartilham um olhar comum sobre o tema. Ambos veem o problema como sistêmico, não como culpa dos indivíduos, "das pessoas que já não sabem mais comer". 

A jornalista explica que a transição da comida tradicional e natural para uma alimentação cada vez mais ultraprocessada está ocorrendo em vários países da região, com consequências negativas para a saúde e o meio ambiente.  

Um relatório da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), publicado em 2019, informou que as vendas de alimentos e bebidas ultraprocessados na América Latina cresceram 8,3% entre 2009 e 2014, o último ano com dados disponíveis, e apontou uma estimativa de aumento de 9,2% entre 2014 a 2019. O relatório também associa um maior consumo desses produtos com a obesidade na região, onde cerca de 360 milhões de pessoas, quase 60% da população, estão acima do peso.

"A América Latina é uma região muito empobrecida na qual a alimentação se transformou no consumo possível, ela se tornou programa, saída, entretenimento, prêmio para as crianças… Por isso há tanta cobertura e publicidade do McDonald's nas favelas e bairros populares, porque é como se chegasse uma forma de progresso, mas não é progresso, é mais deterioração", diz ela.

Banca de frutas

Banca de frutas. Foto Miguel Tovar/Bocado

As conversas entre os dois jornalistas também serviram para que eles percebessem o quanto fazia falta um meio independente para publicar as matérias. Isso porque, segundo Barruti, os veículos tradicionais da região muitas vezes não contam com os recursos necessários para fazer jornalismo investigativo. 

"Muitas vezes, quando você trabalha em um jornal, em três dias você tem que publicar uma nota. Encontramos uma impossibilidade, nesses meios, de abordar o tema de uma forma profunda, com o tempo que ele requer e com o orçamento adequado para nos dar esse tempo", diz Barruti.

Ela afirma ainda que há uma dificuldade, nesses veículos, de nomear empresas da indústria de alimentos, que são grandes anunciantes. A censura sobre esse tema é bastante comum, com temas, marcas e palavras vetadas, explica a jornalista. Ela se lembra de um episódio marcante, quando trabalhava em uma televisão. "Fizemos um especial sobre comida instantânea, e tínhamos que dizer comida imediata, porque uma marca tinha pedido que eu não dissesse a palavra instantânea. Essas coisas acontecem o tempo todo". 

Com esse tipo de entrave, diz ela, o acesso à informação sobre alimentos está muito prejudicado na América Latina. "Esses substitutos alimentares se infiltraram em nossas mesas, e não tínhamos informações para entender os danos que eles causavam. Se essas informações de repente aparecem, isso é muito perigoso para o negócio de vender junk food. E aí há uma enorme guerra pelo acesso à informação", afirma.  

Para contornar essas dificuldades, o Bocado quer levar mais jornalistas a cobrir esse tema. Até o fim do ano, pretendem realizar oficinas virtuais de formação e criar uma rede colaborativa. Por isso, estão com um formulário no site, para jornalistas na América Latina que queiram participar. O Bocado também está aberto a sugestões de pauta, pelo email info@bocado.lat.

"Queremos criar um cadastro de pessoas que tenham interesse em cobrir esse assunto, que tenham ou não um histórico no tema, com uma mistura de repórteres mais experientes e outros menos", conta Peres. 

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